quinta-feira, 20 de maio de 2010

Carta aos (já) velhos amigos

Se pudesse, nenhum de vocês morreria antes mim. Quero lhes preceder no último passeio não por heroísmo, mas por pura covardia. Tenho medo da dor de perdê-los. Padeço como viúva quando digo adeus a um amigo. Por meses, não valho nada. E sei que não tenho forças para enfrentar meses de desconsolo.


Vinicius de Moraes chamava Cecília Meireles de suave amiga, e assim eu os tenho, meus suaves amigos.


Devo a vocês as poucas cores que sobram em meu coração castanho de decepções. Só escapo de cambalear pelo mundo com a alma mumificada porque vocês nunca me deixaram em paz. De cada um, veio a iniciativa para a conversa; conversa de ferro afiando ferro. Se uma tênue réstia de esperança insiste em brilhar em mim é devido à justeza de caráter que vocês revelaram em momentos descontraídos. Continuo a acreditar que nesse mundão cruel e desumano ainda existem pelo menos sete mil nobres.


Suaves amigos, herdei de nossos encontros, o mínimo de sanidade que me poupa de ser um trapista casamurro. Há muito, eu teria evaporado em devaneios absurdos. Ensimesmado e auto-referenciado, encarnaria o demônio; demônio feroz, daqueles que espumam e se rebentam no asfalto. Na companhia de meus suaves amigos, mesmo homem-joão-da-silva, viro poeta-manancial e profeta-fragrância. Desnudo as fantasias; entre vocês não preciso ser outro senão euzinho, sem nenhuma pretensão. Juntos em nossas fábulas, somos vilões; em nossas parábolas, pródigos ou pais sofridos; em nossos poemas, amantes esquecidos; em nossas piadas, bufões atrapalhados.


O tempo passa. A maresia do kronos, que tudo corrói, também enferruja os elos das grandes amizades. Vigiemos para que essa inexorabilidade nunca nos impeça de cruzar caminhos. Não deixemos que encontros só aconteçam nas tragédias, nos corredores dos hospitais ou no constrangimento do luto.


Carecemos da mesa posta. Arranjemos desculpa para conversas longas, daquelas que se estendem até a boquinha da noite. Por enquanto, a palavra saudade não deve ser pronunciada entre nós. Breve nos perderemos uns dos outros - a morte é desalmada. Chegará a noite escura para nos afastar em longos abismos. Nossos rostos se dispersarão no ruço que encobre a velhice.


Preciso de cicerones, gente que me dê a mão, na última etapa desta breve existência. “Vigiem comigo, nem que seja por uma hora”. Não me abandonem a vagar, arquejado e sorumbático, até evaporar-me. Peço-lhes o regaço como travesseiro; estou disposto a repousar a cabeça até na pedra para sonhar com a escada que toca o céu.


Surpreendamo-nos! Que não seja necessário a ameaça de um meteoro, a iminência de um câncer ou a descoberta de Atlântida para que peguemos o telefone: “Eu só liguei para dizer que você é especial para mim”. Não adiemos para a eternidade as palavras que deveríamos ter coragem de dizer agora. Não esperemos para nos presentear com coroas de flores.


Quando penso em dar brados pentecostais com glórias a Deus, lembro que posso sussurrar: “Eu te amo meu amigo”, e Deus ficará satisfeito.




Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria
www.ricardogodim.com/

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